Era uma vez uma casa…

Ela parecia tão grande aos meus olhos de criança… seu jardim parecia não ter fim…

A nossa casa ficava na vila dos médicos em João Monlevade (município em Minas Gerais).

A casa tinha um jardim na frente que parecia emendar com o jardim dos
fundos.

Tinha grandes janelas de madeira que se abriam em duas partes para quem
quisesse ver a rua, ou espiar as crianças no quintal. Aliás, seu quintal
guardava muitas histórias de crianças.

Entre a maioria das casas dos vizinhos (todos amigos na nossa rua), havia
apenas uma cerca baixa que fazia divisão entre os terrenos. As crianças mais velhas pulavam a cerca para brincarem com os amigos vizinhos.

Lembro-me bem, que quando pequena não conseguia pular a cerca da casa do Dr. José Dias, para encontrar com as crianças maiores, então gritava o nome de sua esposa: Dona Alina, me pula da cerca!!!


Cresci um pouco mais e a cerca já não era mais um obstáculo para visitar
minha nova vizinha, Maria Luiza. Maria Luiza era filha do Dr. Ildeu, o novo morador da casa que era do Dr. Zé Dias.

E como brincávamos!!!

Sua casa tinha um balanço que eu adorava balançar… mas Maria Luiza era
imbatível na altura em que balançava.

Certa vez, tentei ir mais forte e cai do balanço, por sorte não quebrei nada.
Mas, minha Tia Laurita, quando viu a minha queda do jardim, logo
gritou: Theresa! Vou contar para o seu pai o que você está fazendo!!!

Eu não tinha medo do meu pai brigar comigo, mas da minha mãe já não posso dizer o mesmo.

Entretanto, como eu estava de férias em Monlevade, minha mãe não estava ali, ela estava na nossa outra casa em Belo Horizonte cuidando dos mais velhos.

Fico pensando… será que minha Tia Laurita me achava levada?

Mas quando a minha outra tia (Tia Santa) vinha nos visitar em
Monlevade, ela era sempre amável e sempre nos agradava.

Tia Santa era solteira como a Tia Laurita. Estas tias eram irmãs do meu pai. Meu pai era o caçula de sua família. Suas irmãs mais velhas sempre o tratavam com muito carinho.

Santa era o seu apelido, e só fui descobrir mais tarde que o seu nome não era esse: Graziela era o seu nome.

Bem, nas minhas aventuras com Maria Luiza, nada escapava de uma boa diversão.

Havia uma rampa nas nossas casas que dava acesso a um morro e também a uma mata. Ouvia dizer, que lá em cima do morro, no terreno da minha casa, havia um galinheiro no passado. Mas já no terreno da minha vizinha, podíamos subir no morro e atravessar a mata para chegar numa casa bem grande, e que até parecia uma fazenda. Depois descobri que aquela casa era o famoso “Solar Monlevade”, sede do pioneiro benfeitor da cidade (Jean-Antoine Félix Dissandes de Monlevade).

Não sabia que o nome João Monlevade era em homenagem a um desbravador francês….

“O engenheiro francês Jean-Antoine Félix Dissandes de Monlevade chegou a região em agosto de 1817. O município de Monlevade não passava de uma área com densa mata fechada. Jean comandou um estudo profundo sobre o solo do lugar. Então, foram descobertas muitas jazidas propícias para a produção de ferro. Após isso, o francês percorreu várias comarcas, como Sabará, Caeté e São Miguel de Piracicaba, onde adquiriu algumas “sesmarias” e construiu uma forja Catalã, além de sua moradia, o Solar Monlevade, em 1818. Montou uma fábrica, obtendo grande sucesso, sendo uma das maiores do período imperial, produzindo desde enxadas até freios para animais. Em 1935, foi implantada outra grande indústria em João Monlevade, a Companhia Siderúrgica Belgo Mineira, para qual o meu pai trabalhava, hoje atual ArcelorMittal Aços Longos”.

Bem, Maria Luiza parecia ter um parente (talvez tia) que parecia morar lá. Não me lembro bem, mas eu ia escondido com ela visitar essa tal “Tia” e essa tal casa misteriosa.

Certo dia, meu irmão, que era logo acima de mim, descobriu que eu estava
andando por aquela mata e me “dedurou” para o meu pai. Daí eu não fui
mais, porque ali era perigoso pois haviam cobras na mata.

Então, brincávamos também de escalar o morro, ao invés de subir a rampa. Mas mesmo assim, deixei de brincar no morro, pois um belo dia, quando estava muito apertada para ir ao banheiro, escalei o morro e desci correndo pela rampa e tropecei. Desci rolando como uma bola pela rampa abaixo… Eu realmente não sei como não quebrei nada!

E de novo minha tia veio me dar uma bronca… Aiaiaia!!!

No nosso quintal tinhas muitas árvores frutíferas, flores, vários canteiros de horta e tinha também cana. Ah, como eu adorava chupar cana!

Andava correndo sempre pelo jardim, caçava borboletas, fazia misturas com as cores das flores, reuníamos também com outras meninas para fazer enterro de passarinhos mortos pelas espingardas de chumbinho dos meninos.

Tudo era bom e divertido…

Contudo, a diversão não ficava somente dentro da casa, mas também
passeávamos no clube da cidade (Social Clube), na casa de outros médicos e roubávamos uvas da parreira da Dindinha Déa (a pediatra Dra. Déa Ramos). Visitávamos também o Hospital Margarida que era tão bem cuidado.

No hospital, passeávamos no campo de vôlei das freiras, íamos a capela…. Algumas crianças mais velhas ficavam disputando quem teria coragem para espiar da janela do necrotério, para ver os acidentados mortos, que chegavam ao hospital.

O hospital Margarida recebia muitos acidentados por causa da “estrada da morte”, como era conhecida a BR- 381, que passa por João Monlevade. Até meu pai, certa vez se acidentou nessa estrada, mas não era a sua hora.

Meu pai era patologista e radiologista, e administrava o laboratório dentro do Hospital Margarida. Papai sempre nos trazia tubos de ensaio, pipetas e potes de vidro para experiências. Mas já se sabe que no passado, médico do interior fazia de tudo, não é mesmo?!

Meu pai conhecia muita da medicina, pois assim diziam… Ele também gostava muito de estudar e tinha uma biblioteca em nossa casa com muitos livros importados, onde se debruçava para ler.

A nossa casa tinha um alpendre que ali podíamos nos assentar nos poucos degraus vermelhos e apreciar a vista da rua.

O chão do alpendre era revestido de uma lajota vermelha que parecia brilhar. Deste alpendre avistávamos o Hospital Margarida, o carro do leite que entregava leite na nossa porta, a bicicleta do pão e ganhávamos até balas.

Podíamos avistar também, quando papai chegava voltando a pé do hospital para casa, que era ali quase em frente.

A única coisa que eu não gostava naquela casa era um pinheiro na frente da casa, só porque um dia ouvi dizer que quando os pinheiros crescem mais do que a altura da casa o dono da casa morre.

Leia também: O que é essencial para ser feliz?
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Meu Deus, como eu queria que aquele pinheiro não crescesse mais!

Coletei memórias dessa casa até os nove anos de idade, pois meu pai morreu quando eu tinha essa idade.

Foi algo repentino… um choque para todos nós.

Não me lembro mais se o pinheiro tinha mesmo passado a altura da casa…

Não somente aos nossos olhos de filhos órfãos e saudosos, mas nosso pai era
uma figura exemplar e muito querido na sua profissão de médico e amigo de todos. Eram muitos os testemunhos afetuosos e as palavras amigáveis dedicadas a ele. Dois dias depois de sua morte, saiu em um Jornal de Cel. Fabriciano os seguintes dizeres:

O NOME DE HOJE

Os médicos não choram…

“Dizem que os médicos não choram.

Contesto aos que pensam assim… Há dias conversando com um, muito amigo, pude observar nele, que embora vivendo e experimentando os sofrimentos das pessoas em suas enfermidades; eles também têm seus momentos de vulnerabilidade sentimental.

No desenrolar da conversa, falávamos sobre outro médico que partiu deste mundo deixando uma série de obras inenarráveis.

Senti o quanto o meu amigo era tocado pelo saudosismo. Seus olhos expeliam lágrimas vindas do fundo de sua alma, revelando o quanto sentia a perda do amigo e colega.

Deixando uma lacuna dentro da classe, com sua morte morreu também um pouco do Hospital Margarida.

Não mantive com ele uma idêntica amizade, mas sei que foi um dos pioneiros da evolução médica do hospital.

Ali instalou o banco de sangue, laboratório, Raio X, e ainda ensinou a muitos principiantes com amor e solicitude, como medicar.

Frágil fisicamente, mas de extraordinários feitos guerreiros, soube com espiritualidade e humildade aceitar as críticas que lhe imputavam dentro da profissão que exercia.

Muitas vezes noites a dentro, para dar conta de suas obrigações que um dia prometeu cumprir nos preceitos do juramento que fizera quando se formou.

Fora da medicina foi um dos precursores do progresso na nossa cidade. A “A.C.M”, adveio um clube que seria o seu sonho…

O Bairro de Lourdes, um dos mais bonitos da nossa cidade é obra de sua inspiração, ou seja, esteve sempre ligado as nossas coisas.

Talvez não encontramos alguém que lhe renda alguma homenagem por tudo o que fez, mas quem com ele conviveu jamais o esquecerá e estará sempre lhe rendendo tributos pelo muito que foi.

E porque você foi tudo isso no anonimato sem muito alarde, e porque foi amigo do meu amigo Dr. Lassy, transcrevo hoje o seu nome:

Dr. Geraldo Soares de Sá como “O NOME DE HOJE”

(Renato Martins Lima- Cel. Fabriciano 04 a 10-08-79)

Dr Lassy era um grande amigo do meu pai. Brinquei muitas vezes em sua casa com suas filhas. Aliás, em sua casa, havia uma grande casa de bonecas de madeira…era um sonho também para mim ter uma casa de bonecas no quintal.

Posteriormente, após a morte de meu pai, a nossa rua passou a se chamar rua Dr. Geraldo Soares de Sá.

Bem, comecei falando da minha saudosa casa de infância, falei um pouco da história do meu pai e também da cidade onde nasci: João Monlevade.

No fundo, tudo se mistura, afinal todos os lugares têm histórias e parecem
eternizar o espírito de alguém que sonhou, que construiu, que criou raízes no lugar. E as boas memórias passam para as gerações seguintes como um sonho… ou talvez um bom perfume que ainda exala no ar.

A minha casa tinha histórias…

A minha casa estava impregnada do espírito do meu pai.

Se você tem histórias para contar dos lugares que te fizeram felizes, não
deixe de contar!

Abraço fraterno, Theresa Calonge

-Sesmaria: Era um lote de terras distribuído a um beneficiário, em nome do rei de Portugal, com o objetivo de cultivar terras virgens

-Forja catalã: A forja catalã era um estabelecimento siderúrgico dedicado à
redução direta do minério de ferro e à produção de ferro e aço que empregava um forno de pedra com 2 metros de altura, cujos insufladores de ar eram foles de couro acionados por trompas d’água.

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2 comentários em “Era uma vez uma casa…

  • Suas lembranças de infância são fantásticas!
    Um beijo

  • Nossa Tereza, estava me deliciando com todas essas lembranças maravilhosas!
    Que texto lindo e que delicadeza de detalhes.
    Foi passando um filme e relembrando exatamente como você falou.
    Seu pai deixou saudades e escreveu sua história em João Monlevade, pode ter certeza disso!
    Você esqueceu de um detalhe!! Rsss Você só podia brincar comigo depois que tomasse um belo café da manhã e com gemada!
    Aí sim, fazíamos experiências com as flores e os tubos de ensaios que sempre tínhamos, acho que dado pelo seu pai. Amava essas experiências com flores!!
    O balanço, ahhhh realmente aproveitamos muito! Ainda bem que você não quebrou nada! Ahhh mas se tivesse quebrado, ia ser por um bom motivo, de uma infância feliz!
    A mata que passávamos, realmente era uma super aventura!!! A casa misteriosa era gigante para nós, ainda mais pelo ponto de vista de nós crianças. Era a casa dos meus tios padrinhos, Tia Terezinha e tio Antônio. A casa era sempre do superintendente da Belgo.
    Puxa como não lembrar da Dra. Déa, uma pessoa queridíssima por todos e que deixou também muitas saudades!

    Quando você ia embora eu ficava muito triste, pois as nossas aventuras só iriam acontecer nas férias seguintes.

    Lembro muito de vir a Belo Horizonte e pedir ao meu pai para me deixar na sua casa para brincarmos e matarmos a saudade!

    Que bom relembrar tudo isso com você! Fica a certeza que fomos crianças muito felizes cercadas de pessoas muito especiais!
    Obrigada pelo carinho.
    Um beijo muito especial pra você, Tereza!
    Maria Luiza

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